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quarta-feira, 24 de março de 2010

As bagagens emocionais

Fui ver o filme "Nas nuvens". Para quem não sabe ou não ouviu falar, este é o mais recente filme de Jason Reitman, realizador de "Obrigado por fumar" e "Juno". Com George Clooney no elenco, e apresentado quase como se de uma comédia romântica se tratasse, quem foi com essa ideia ver o filme saíu desiludido da sala de cinema. Para quem conhecesse minimamente o estilo de Jason Reitman era fácil de prever que "Nas nuvens" teria de ser mais do que uma simples comédia romântica. Porque este filme é muito mais do do que uma comédia para nos deixar leves, contentes e a ver passarinhos a chilrear em todos os sítios. É, antes, um filme para nos fazer pensar. E que nem todos terão capacidade para perceber. Ou quererão entender.

E é sobre isso que vou falar neste texto. Chamei-lhe "As bagagens emocionais" não para fazer qualquer género de trocadilho com o facto de a vida do personagem principal se passar em viagens constantes mas porque é a isso que o filme apela. A que pensemos nas nossas bagagens emocionais. E na forma como muitos de nós se recusa a olhar para as suas e a perceber que é impossível viver isolado, sem ligações a outros seres humanos e sem compromissos.

Todos nós conhecemos pessoas que, e o paradigma perfeito desse tipo de pessoas é exactamente George Clooney -daí toda a ironia do filme ser ainda maior, fazer mais sentido, e às tantas sermos tentados a pensar que quem ali está não é o Ryan Bingham mas sim o próprio actor, se recusam a estabelecer laços.

Seja para parecer diferentes de todos os outros e parecerem mais interessantes, seja porque não querem lidar com a ideia de um dia poderem vir a ser rejeitados, rejeitando assim primeiro eles antes que alguém os faça sentir substituíveis, seja porque argumentam que todos os grandes momentos da vida se vivem sozinho.

No filme utilizam-se mochilas como paradigmas de bagagens emocionais. Que nos pesam nas costas, prendem os movimentos e impedem de ser livres. E nos impedem de andar em frente. E o personagem principal da história, protótipo perfeito das pessoas que se recusam a ter ligações seja ao que for, sugere, nas palestras motivacionais que organiza, que as pessoas esvaziem os ditos objectos e comecem, na manhã seguinte, sem nada que os impeça de fazer o desejam, ser quem querem, e viver a vida como anseiam. No fundo a ideia é que se tornem pessoas como ele.

Mas o que estas pessoas como ele não sabem é que o maior peso que existe é o peso da solidão. Chegar a casa e ter, à nossa espera, apenas paredes vazias. Memórias sem recordações. E ninguém com quem partilhar afecto. Porque quem não (se) dá também não recebe de volta. E, por mais compensador que inicialmente possa ser a ideia de ser livre, essa mesma ideia transforma-se depois no maior peso que temos de transportar. A prisão de um estereótipo criado por nós.

E não sabem também que as relações positivas não são um fardo. Que não pesam. Nem nos atam a realidades que não desejamos. Criam, só e apenas, laços positivos com outros ser humanos com quem podemos dar e receber aquilo que desejarmos. No fundo as pessoas que dizem que ser independente é o melhor do mundo são as que mais vivem carregadas com as bagagens emocionais que trazem consigo desde que viveram relações menos felizes. Relações que por algum motivo lhes retiraram a liberdade, os fizeram sentir presos a realidades que não os faziam felizes, e a dar o que não sentiam vontade apenas porque assim era esperado. Ou então que vivem iludidos por um modelo qualquer que algum dia se lembrou de dizer que estar sozinho é que é bom.

Nem sequer sabem que os compromissos são coisas positivas. São sinais de que conseguimos estabelecer relações interpessoais satisfatórias, que nos conseguimos manter fieís a uma determinada situação, que conseguimos dar e receber de forma saudável, recíproca, e sem obrigações. E que o maior compromisso que temos é connosco próprios. Um compromisso de tentarmos ser felizes. Compromisso esse que não se consegue se nos recusarmos permanentemente a criar laços. Porque nenhum homem é uma ilha. E por isso precisamos dos outros seres humanos. É na relação com os outros que crescemos, aprendemos e evoluímos. É necessário sabermos ser felizes sozinhos para podermos ser felizes com os outros sim. Mas não é possível ser feliz estando completamente sozinho. E negando todas as ligações com os outros seres humanos.

E estas pessoas, que não sabem nada disto, são aquelas que um dia, quando de repente algo as faz olhar em volta e descer da ilusão em que sempre se forçaram a viver, acordam e se sentem completamente sozinhas. Porque a liberdade que tanto queriam acabou por se tornar na maior das prisões. E inevitavelmente dão consigo a pensar que, se tivessem realmente pousado a mochila das recordações mais pesadas, não teriam deixado passar aquela ou aquelas pessoas que, a dada altura, se cruzou com eles e até lhes dizia alguma coisa. Mas que deixaram passar porque estavam demasiado ocupados a tentar ser livres.

6 comentários:

  1. Sei que é um comentário básico, mas não teria dito melhor... O filme é o retrato fiel das relações dos dias de hoje.

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  2. Nós psicólogas temos uma forma muito peculiar de analisar as coisas ;)

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  3. Concordo.Eu tb vi o filme e estou de acordo.
    Sandrina

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  4. Também gostei do filme!
    Faz-nos pensar, sim!

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  5. Engraçado que comentei este post. :)

    E, aqui, há umas pistas sobre a tua profissão, quer nos comentários, quer no próprio texto.

    Cada vez que lemos algo, vemos coisas novas, entendemos de maneira diferente. E, desta vez (não me recordando se me teria chamado tanto a atenção da primeira vez que o li), penso que o que resume, na perfeição, todo o teu texto são as duas últimas frases.

    E inevitavelmente dão consigo a pensar que, se tivessem realmente pousado a mochila das recordações mais pesadas, não teriam deixado passar aquela ou aquelas pessoas que, a dada altura, se cruzou com eles e até lhes dizia alguma coisa. Mas que deixaram passar porque estavam demasiado ocupados a tentar ser livres.

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